31.5.04

Não falamos sobre o sentido da vida, da morte, nem experimentamos matérias que manipulemos, fora de nós. Arriscamos o destino nas dobras que apuram o silêncio; os ambientes e geografias que criamos são o nosso íntimo exposto; ficamos sentados, observados desse íntimo pela expressão que espera pelo nosso próprio coração criado.

- Vou falar-vos de um rei que se apaixonou por uma rapariga pobre. Não podemos saber o que ele lhe achava, mas sei que tomou rapidamente a decisão de com ela se casar. O coração do rei não estava contaminado pela prudência; ignorava as dificuldades que descobre a razão para guardar o coração cativo e estéril, e dar origem a essas situações impotentes que os poetas tanto prezam, e tornam necessárias as suas fórmulas mágicas.

E foi assim que a sua união foi um grande acontecimento.

O Amor proclama a sua vitória, quando une dois iguais. Mas vitória bem maior proclamou nesse dia quando igualizou o que, à partida, era desigual. Foi então que surgiu na alma do rei uma insidiosa preocupação e um princípio de mágoa. Uma dessas interrogações sem origem, que armadilham todo o pensamento: seria a sua nova esposa realmente feliz? Teria ela um fundo suficientemente são e franco para nunca se lembrar do que ele tanto desejara esquecer, que ele era rei e ela fora rapariga de baixo nascimento? Porque se tal acontecesse, se essa lembrança despertasse nela para lhe levar o pensamento para longe do rei, se ele a atraísse para o hermetismo de uma dor secreta, que seria, então, do esplendor do amor que os unia?

- Os poetas foram dispensados - disse o Mestre da Culpa - de cantar as insistentes hesitações do coração do rei, mas serão agora necessários para cantarem a sua insidiosa dúvida.

- Assim é - continuou Hadewijch - não teria sido ela mais feliz, perguntava-se o rei, vivendo segundo o seu nascimento, esposa de um homem da sua criação, continuando pobre, mas simples e alegre no seu amor?

Uma grande mágoa se preparava no coração do rei, porque preferia perder a sua amada, a ser visto por ela como um benfeitor. E se ela não o compreendesse?

- É uma mágoa de rei - comentou o Mestre da Culpa - E para essa dor, não há, nas línguas humanas, nome que a nomeie. E todas as línguas são egoistas para exprimir uma dor que nem sequer suspeitam.

- Mas se não há palavra que o exprima, qual será o destino desse amor entre desiguais? - perguntou Hadewijch - E, se este amor não tem destino, Deus e o Homem não se podem amar. Mesmo no paraíso, não há só alegria, mas também tristeza.

- Sim - concorda o Mestre da Culpa - Mas peguemos na história, no momento, no instante em que os afectos do rei e da rapariga se cruzam, em que, pela primeira vez, o amor de um se troca com o amor do outro. É, nesse instante que ___________________________

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