19.5.04

O porre do presidente

FREI BETTO

Anda esquecido por aí o único filme dirigido pelo
Henfil, "Deu no New York Times". É uma sátira. Num país miserável governado por
um ditador, o jornal é ansiosamente aguardado a cada manhã para pautar a
agenda do governo.
Profeta, Henfil já nos alertava que o NYT não pode ser
levado a sério. Trata-se de um pastelão que sempre se aliou à política
colonialista e intervencionista da Casa Branca.
Por que o NYT não segue as pegadas do "Washington
Post" e denuncia as torturas que as tropas americanas infligem aos
iraquianos? Por que não clama contra o campo de concentração, avesso à
tradição jurídica, que os EUA instalaram na base naval de Guantánamo, violando a
soberania de Cuba? Ninguém é capaz de imaginar uma base naval de Cuba nas
costas da
> Califórnia, protegida pelo silêncio conivente da
grande
mídia... Algo no governo Lula incomoda o NYT. Claro, este
governo obrigou os EUA a rever a agenda da Alca; a OMC, em Cancún, a tratar com
mais respeito os países emergentes; e, agora, pela primeira vez, os EUA
se vêem punidos pela OMC no modo como conduzem sua política algodoeira.
Como se destrói um símbolo? Qualquer manual de
propaganda fascista revela a receita. Não convém criticar os princípios que ele
encarna. Deve-se começar por ridicularizá-lo, como a foto de João Pedro Stédile
retocada em capas de revista e de jornais para expressar um perfil demoníaco.
Não se debate a importância da reforma agrária. Tenta-se fugir da
questão política e centrar o alvo na mais vulnerável: a moral. Assim foi
com Luther King, acusado de ter várias amantes; com Mandela, tido como
desequilibrado; com Gandhi, "um frouxo", na opinião de seus adversários,
que o assassinaram. Lula nunca teve qualquer dependência de álcool. Jamais
freqüentou bares, mesmo no tempo em que, metalúrgico, isso era comum no
ABC. Se toma um trago é por razões sociais, como também faço. Mas jamais em
excesso ou para atingir aquele nível de inconsciência que abre espaço,
em nosso comportamento, à irresponsabilidade.
Mas Lula é viciado. Em política. Adora tomar porres
homéricos de povão, com quem gosta de se misturar, abraçar e afagar. Ali,
entre os pobres, sua adrenalina vai a mil. Por isso, fica de ressaca quando
a conjuntura o obriga a aprovar um novo salário-mínimo aquém de seu
sonho e das necessidades dos trabalhadores e dos aposentados.
O NYT pretendeu minar a honra e a autoridade de nosso
presidente, porque este obrigou a Casa Branca a conter a sua sanha na
Venezuela e em Cuba. Nosso governo restaurou o Mercosul, aproximou-o do
Grupo Andino, e não apoiou a invasão do Iraque. O ministro Celso Amorim
não fica descalço quando ingressa nos EUA, como o fazia o ministro das
Relações Exteriores de FHC.
Indagado nos EUA se gostava de Bush, Lula respondeu
que gosta mesmo é da Marisa, com quem está casado há trinta anos. O NYT não
pode suportar a autoridade moral e política de um retirante
nordestino, que saiu da fábrica para presidir o Brasil. Por isso, tenta forçá-lo a
beber o veneno destilado em suas páginas. Esquece que somos vacinados contra
esse tipo de armação,como aquela que pretendeu atingir o ministro José
Dirceu no caso Waldomiro.
Ninguém acusa João Paulo II de corrupto porque seu
assessor direto, monsenhor Paul Marcinkus, caiu nas malhas da Justiça
italiana, acusado de fraude e evasão de divisas.
Deu no NYT que Lula bebe em excesso. A fonte, Leonel
Brizola. Talvez Chico Buarque possa explicar quando canta o pote de mágoa. A
embriaguez da derrota agride a lucidez da vitória. Mas quem tinha
mesmo razão era o Henfil.

FREI BETTO é escritor e assessor especial do
presidente da
República.

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